quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Parte 6

5. O SONHO

          Ao adormecer na floresta, César sonhou. Estava na floresta, mas não parecia a mesma. As árvores eram inteiramente negras. O solo era avermelhado. Olhou para suas botas, estavam cheias daquela terra vermelha. Levantou e sacudiu as roupas, tentando se livrar da cor de sangue. Olhou em volta, só o preto, por todos os lados. O céu estava cinza chumbo, como se uma tempestade estivesse a caminho. Podia sentir o vento quente no rosto, viria chuva. Relâmpagos ao longe, ainda tinha tempo. Percebeu a ausência dos amigos. Deu-se conta que deveria estar dormindo, tinha consciência que estava em um sonho, e que a qualquer momento poderia acordar. Mas por que estava dormindo? Por que ainda não havia acordado, com o tanto ainda pela frente que teriam que seguir? Fez força, mas nada mudou... Resolveu prosseguir.
          Caminhou sem rumo por entre a vegetação negra. Não sabia para onde ir. Esperava só passar o tempo para que despertasse. Mas estava demorando. Quanto mais caminhava na floresta, mais sentia que estava longe da sua realidade. Chegou até a campina. Parecia a mesma. Não fosse a grama baixa ser toda em tom vermelho. Olhou para o chão e viu maçãs, centenas delas espalhadas pela campina. Entendeu tudo. Foram elas que o trouxeram ali. Continuou pela campina esmagando as maçãs que estavam pelo caminho. Quase caiu algumas vezes. Olhou adiante, enxergou as montanhas, agora negras. O gelo que havia visto nos cumes, ali deu lugar à lava. As montanhas eram vulcões, e estavam ativos. Mas continuou seguindo em direção a eles porque lembrava que este era o sentido que deveria seguir enquanto estava acordado. Desejou ter ali seu amigo cavalo para que pudesse correr, a lentidão de suas pernas o irritava. 
          De repente, ouviu um barulho, como se outros caminhassem sobre as maças. Não quis olhar para trás. Ouviu uivos muito altos, logo atrás dele. Teve que se virar, pois a curiosidade falava mais alto do que o medo. Quando se virou, deparou-se com seres que não conseguia explicar. Pareciam grandes lobos, mas não estavam nítidos. Eram borrões de lobos, nuvens de lobos, sombras de lobos... Não entendia. Aqueles vultos em forma de lobo foram se aproximando e o cercando. Quando se deu conta, estava dentro de um circulo formado por aqueles borrões negros. Ele podia os ouvir. Parecia que todos tinham uma única voz, falam as mesmas palavras ao mesmo tempo, como uma legião.
          “Então estavam apetitosas as maçãs!” – ouviu risadas – “Você é estúpido demais, não poderá se tornar um deles, nós iremos sumir com todos e tudo que você conhece, você não tem poder suficiente para se tornar um deles!”
          Aqueles lobos pareciam estar com raiva, estavam o ameaçando.
          - Eu sei que isto é um sonho, daqui a pouco acordarei e vocês não mais existirão!
          “Nós sempre iremos existir. Nós apagamos tudo para dificultar as coisas para você! Mas você insiste em usar do seu poder! Em criar as coisas em benefício próprio. Você nunca irá chegar até eles. Não tem força para isso. Eles já são muitos, não deixaremos mais um se unir a eles.”
          - Ah! Mas que bom que pelo menos vocês estão tentando me explicar alguma coisa do que está acontecendo aqui. Vamos, continuem falando, assim posso ir ligando os pontos e descobrir toda essa história. Meu pai esta entre estes Eles que vocês tanto falam?
          Os vultos pareceram ter se irritado com o comentário de César, porque rosnaram todos num mesmo tom. Começaram a andar em volta de César, como lobos em volta da presa, prontos para atacar.
          “Sim, ele está a sua espera! E vai continuar porque você não irá chegar, não ira cumprir sua profecia! Fraco! Covarde! Não pode se tornar um deles, não tem poder suficiente. Nós não permitiremos.” 
          O cerco de vultos parecia se fechar cada vez mais em volta do garoto. Não tinha medo porque sabia que estava sonhando, achava que ali, dentro de seu sono, não poderia se machucar. Prestava atenção em tudo que era dito pelas criaturas, tentando preencher as lacunas da história que estava vivendo.
          - Daqui a pouco eu irei acordar, e então vocês irão sumir!
          “Seu tolo, tão cedo não acordará, pois foi enfeitiçado. É suficiente ignorante para não saber que a feitiçaria pode lhe atingir onde quer que você esteja, seja na realidade ou nos sonhos... E nós, nós somos pura magia!”
          O círculo cada vez mais fechado, depois daquela revelação, começou a lhe apavorar. Os rosnados ecoavam em sua cabeça, não sabia o que fazer para escapar dali, estava cercado de todos os lados.  De repente, todos ouviram um rugido estrondoso cheio de raiva, e os as sombras de lobos pararam de avançar e ecoaram: “Mestre!”
          César viu aquelas sombras abrirem caminho para algo muito maior que se aproximava. Parecia um urso, mas era extremamente maior, e assim como os lobos, era formado de sombra. Não era nítido tampouco, mas lembrava a forma de um urso. Entretanto César não poderia afirmar com certeza que criatura era aquela, de tão grande que era.
          Aquela coisa enorme foi se aproximando do grupo, emanando seu ódio. “Miseráveis, o que pensam que estão fazendo? Estão revelando tudo para o garoto? Agora ele sabe demais, está em vantagem sobre nós. Vocês o consideram um tolo, um idiota, mas estão subestimando seu poder.” Isso tudo era dito entre rosnados, mostrando toda a insatisfação da criatura. “Por acaso já não viram do que ele é capaz até agora? A ignorância dele sobre a história era a nossa vantagem, e querem estragar tudo? Façam o que já deveriam ter feito desde que ele foi enfeitiçado. Removam algo do corpo dele que seja para ele de grande serventia para a jornada.”
          César sentiu o pavor percorrer sua espinha depois de ouvir a última frase e não pôde se conter:
          - Remover o quê? O que pretendem tirar de mim? Um braço, uma perna?
          “Exato” – disse o imponente urso – “ Mas não se preocupe, estamos dentro do seu sonho, ou seja, dentro da sua cabeça, é um feitiço cerebral. Você não irá acordar sem a perna ou o braço, mas sim incapaz de utilizá-los. Seus membros estarão lá, mas inúteis. Tampouco você irá saber o que lhe aconteceu, pois eu mesmo irei enfeitiçá-lo para que não lembre nada dessa conversa que tivemos, afinal de contas, aqui foi dito mais do que era necessário e não posso mais correr riscos, você esta muito a frente do que eu gostaria no momento.”
          César ouvia todas aquelas palavras incrédulo, pensava em como poderia escapar dali, em como foi se meter em tudo aquilo. Como sua vida era normal até então, o que teria ele feito de errado para merecer aquele terrível destino. Estava na escuridão, sem os amigos, sem saber a sua verdadeira história, e o seu verdadeiro destino. Quem era o seu pai? Se ele era tão poderoso, tão especial e afortunado, por que não vinha ao seu auxílio? Teve vontade de chorar ali mesmo, pensou que chorando, sentindo as lágrimas em sua pele, talvez despertasse. Mas também pensou que a última coisa que queria era parecer um covarde na frente daquelas criaturas. Lembrou de como o grande urso falou sobre ele ter um grande poder, e quis poder usar o poder para sair dali. Pensou nos amigos e como gostaria da ajuda deles naquele momento. E quando todos os lobos se prepararam para atacá-lo de uma só vez, a mágica se fez.
          César sentiu a energia em volta dos seus braços, como se o agarra-se, e aquela energia toda, ele podia vê-la. Era brilhante, como feixes de luz e o puxaram para cima, para o alto, longe das criaturas. Ele olhou para baixo e viu os lobos pulando, tentando alcançá-lo. Uivavam, irados. O urso parecia não acreditar naquilo, permaneceu imóvel, derrotado: “Ele está fazendo de novo! Não está mais aqui, está usando a realidade dele!”

          César sentiu outra energia abaixo dele, era também brilhante e de uma cor azulada, clara. Iluminava tudo a sua volta. Estava abaixo dele, aquela nuvem de energia, tinha o formato de um cavalo. E César entendeu na hora, que deveria estar recebendo ajuda dos seus amigos, a aranha e o cavalo. Sentou sobre a nuvem azul, e então ela partiu veloz pelo céu acinzentado. Os lobos tentaram seguir atrás, mas era inútil, aquela boa energia tinha muito mais força.  E sumiu, deixando toda aquela maldade, e seu horrível plano para trás.  Sobre o que parecia a cabeça do cavalo, naquela fumaça de energia azul, havia uma estrela brilhante vermelha. Voaram pelo céu. César sabia que estavam só seguindo adiante, mas sem nenhum destino, pois ali não era a realidade. Acordou de bruços no lombo do amigo cavalo, estavam correndo pela campina. Sobre a cabeça dele, a aranha. Era ela a estrela vermelha. 

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Parte 5

4. A ARANHA

         - Não acho que esse fogo será suficiente para me aquecer, as poucas roupas que trouxe estão encharcadas – César estava nu, havia esticado os dois pares de calças e as duas camisas perto da fogueira, com esperança que secassem até a noite.
         “Você está realmente hilário vestido só de botas meu caro” – a risada do cavalo ecoava na cabeça de César, e ele se lembrou das risadas que dava com seu amigo Gustavo.
         - Precisamos achar um abrigo, pelo cheiro no ar, daqui a algumas horas voltará a chover. Já bastam minhas roupas estarem molhadas, não quero passar a noite embaixo d’água também.
         Recolheu as roupas do chão, ainda úmidas, e seguiram adiante, até que encontraram uma pequena construção de bambus, formando uma casinha minúscula e bem rudimentar.
         “Caçadores acamparam aqui, mas pela vegetação invadindo, não aparecem há muito tempo. Não se importarão que fiquemos por esta noite.”
         Para entrar, o cavalo teve que se espremer e deitar de imediato, pois quase derrubou o teto feito de folhas de palmeira. Lá dentro conseguiram um metro de distancia entre eles. Aquela pequena construção foi um achado de sorte para eles, uma vez que depois de uma hora instalados, a chuva começou a cair pesada. As folhas deixavam passar algumas gotas. Uma das goteiras estava bem acima da cabeça do cavalo. “Era só o que me faltava”.
         Com o cair da noite, e a chuva forte, o frio também chegou. César com as roupas úmidas, ainda sem poder vesti-las, tentava se aninhar o máximo que conseguia em forma de concha.
         - Sabe, todas as roupas que eu tenho, foram feitas pela minha mãe.
         “Não me diga meu caro, é uma grande costureira então.”
         - Sim, a melhor da vila. Foi dessa forma que ela me sustentou desde que nasci, costurando para todos. Assim ela conseguia pôr comida na nossa mesa. Eu me orgulho muito dela, do quanto ela trabalhou por nós dois. Depois que cresci e ganhei alguns músculos, pude ajudar trabalhando na lavoura de alguns vizinhos. Ajudava no plantio e na colheita. Dessa forma, conseguíamos uma parte da comida. Mesmo quando eu já colocava a comida na mesa e não era mais preciso que ela trabalhasse tanto, mesmo assim ela continuou.
         “Uma grande mulher sua mãe, criando você sozinha.”
         - Poucas pessoas na vila foram complacentes com ela. Entre elas a família de Gustavo. A maioria dos outros achava que ela era uma meretriz, por ter se entregue a um homem que esteve apenas de passagem na vila, e que depois a abandonou. Eu nunca a julguei por isso, porque ela foi a melhor mãe que eu pude ter. Nunca senti falta de ter vivido sem um pai.
         “Ela nunca falou nada sobre esse homem com você?
         - Ela só disse que ele havia nos deixado, só isso.  – César estava tremendo, a temperatura baixava a cada instante.
         “César, estou preocupado com você, suas roupas ainda estão molhadas?”
         - Estão úmidas, se eu as colocar agora irei congelar mais do que já estou. Sabe, estou aqui pensando...
         “Em que meu amigo?”
         - Na falta que me faz minha mãe. Em todos os cobertores quentes que ela já costurou para mim. Nas colchas de retalho. Nos casacos de lã de ovelha. Não sei se irei agüentar esta noite amigo, estou com muito frio.
         Foi então, que lá de cima do teto de folhas, desceu sutilmente por uma fina teia, uma minúscula aranha de cor avermelhada. Os dois olharam, parecia que ela flutuava. Foi descendo devagar. E pousou no ombro de César. E então, ele pode ouvi-la:
         “Não se preocupe meu querido, você vai agüentar esta noite, porque eu estou aqui para ajudá-lo.”
         - Boa noite dona aranha. Desculpe, mas como a senhora poderá me ajudar? – disse César surpreso.
         “Ah ela pode César, tenha fé!” – disse o cavalo, ele parecia sorrir ao ver a aranha, parecia que eram velhos amigos – “Como vai a senhora?”
         “Vamos indo não é meu caro?” – havia ela dado uma piscadela para ele? – “Não vou deixar que passe frio meu querido César. Irei fazer para você uma manta com a minha teia.”
         No mesmo instante, a aranha começou a tecer um entrelaçado de fios, com uma rapidez inacreditável. E eles foram vendo aquela rede branca tomando forma em frente a eles. Ia engrossando e ficando mais comprida. Perceberam que a aranha estava ofegante, mas não parava. Tinha pressa, quanto antes terminasse antes César teria o manto para se aquecer.  Depois de meia hora de trabalho duro, ele estava pronto.
         “Cubra-se César, isto manterá você aquecido.”
         Ele pegou aquela peça de teia branca e se enrolou com ela. Era macia e grudenta. Colou em sua pele. Mas serviu a seu propósito, pois no mesmo instante César sentiu o calor voltar ao seu corpo.
         - Como posso agradecê-la dona aranha? Estarei vivo amanhã de manhã graças à senhora!
         “Ora filho, não me agradeça, estou aqui para ajudá-lo. E esse é o trabalho das aranhas não é? Tecer suas teias? Pretendo seguir viagem junto a vocês, sou leve e posso ir no seu ombro. Tenho certeza que serei de grande serventia. Posso tecer teias rapidamente, e elas poderão ser de grande valia em vários momentos. Posso subir nas árvores para termos uma perspectiva do caminho, entrar em pequenos buracos para procurar comida.”
         - Então estamos acertados, você segue conosco. Está de acordo cavalo? Não tem medo de aranhas? – César deu uma risada.
         “Estou de acordo, desta aranha não terei medo.” – riu junto.
         - Então vamos dormir, amanhã é mais um dia. Temos que seguir em frente.
         César rapidamente pegou no sono, confortável e aquecido pela manta de teias.

         Pela manhã, a chuva havia parado. Eles acordaram com o som dos passarinhos que cantavam sobre o teto de folhas da pequena casinha. Eles pareciam dizer todos ao mesmo tempo: “levante César, já está na hora, você precisa continuar”.
         “E então?” – disse a pequena dona aranha – “Qual será o desjejum do nosso bravo e corajoso César?”.
         - Bravo e corajoso são por sua conta – riu César – mas realmente, estou faminto, precisamos buscar alimentos.
         O trio se despediu da casinha, pensando na sorte de terem-na encontrado no dia anterior, e com a certeza de que ela foi o último abrigo decente que encontrariam pelo caminho. Vagaram algumas horas pela floresta. César já usava as roupas secas, e nos ombros tinha a manta de teias, como se fosse uma capa, e no lado direito a aranha como sua escudeira. Caminhava ao lado do cavalo, pois a mata estava muito fechada e não poderiam correr. César decidiu poupar o cavalo de seu peso durante a caminhada. Os passos eram lentos e cuidadosos, o cheiro do verde preenchia a narina dos dois. O orvalho ainda escorria por algumas folhas. Os pequenos animais já estavam acordados e faziam barulho fugindo daqueles intrusos na floresta.
         Depois de algum tempo, perto do meio dia, notaram que a mata ficava menos densa e conforme prosseguiram deram de cara com uma grande campina sem fim, e ao longe, bem ao longe, montanhas. O cume delas parecia ser coberto de neve.
         “Não podemos prosseguir pelo campo enquanto não acharmos comida na floresta.” – disse o cavalo – “Temos que voltar e procurar.”
         - Mas se entrarmos novamente, sem rumo, iremos nos perder, e alguma coisa me diz que aquelas montanhas são a direção certa!”
         “Isso nós resolveremos simplesmente.” – disse a aranha – “Conforme vamos entrando, eu irei tecendo uma linha. Vamos prender o início da linha nesta última árvore e seguimos floresta adentro. Para achar o caminho de volta recolheremos a linha que deixamos pelo caminho.”
         “Excelente minha amiga, é isso mesmo que faremos, assim poderemos procurar comida para nosso amigo César!”
         Rapidamente a aranha teceu um nó envolto no galho mais baixo da última árvore antes da campina, e pulou novamente para o ombro de César. Os três adentraram na floresta, enquanto a linha branca se formava atrás deles. Se vista de cima, a linha ia formando um desenho em ziguezague, o que dava mérito a pequena aranha, pois sem a linha e percorrendo aquele caminho tão cedo não encontrariam o caminho de volta à campina. Depois de cerca de vinte minutos, deram sorte e encontraram uma macieira. Este seria o almoço de César, e a janta provavelmente.
         As maçãs eram de um tom de vermelho tão vivo, que quase pareciam de mentira de tão bonitas. Parecia um convite para que as devorassem. Aquela árvore, ali, parecia fora de lugar. Não se viam muitas árvores frutíferas na floresta, ainda mais na parte mais densa dela. Então, resolveram aproveitar a oportunidade que calhava tão bem. César colheu algumas maçãs para a janta e as colocou na mochila. As do almoço devorou ali mesmo. De repente, começou a se sentir sonolento, os músculos começaram a relaxar, as pernas já não tinham mais força. Ele precisava dormir.
         - Céus, não sei o que está acontecendo comigo, mas estou com muito son... – e tombou no chão.
         “Ah eu sei o que está acontecendo!” – disse o cavalo para a aranha – “Essa árvore não estava aqui antes! Eles fizeram isso para nos atrasar, nos impedir de chegar a tempo!”
         “E agora amigo, o que faremos?”
         “Eu digo o que faremos. Você irá costurar duas cordas grandes envolvendo os braços dele. Elas irão até o galho que esta sobre nós e descerão até mim. Será uma espécie de roldana, para que eu possa puxá-las com a boca a fim de erguê-lo e colocá-lo em minha garupa!”
         Rapidamente a aranha começou a costura em volta dos braços de César. Deus um pulo até o tronco da árvore e foi subindo e tecendo. Depois de algum tempo já estava no galho acima do cavalo e tecia a teia agora para baixo, descendo até parar na boca do cavalo. O trabalho todo foi bem trabalhoso. Demorou uma hora para a confecção das cordas e mais alguns minutos na tentativa de puxar o garoto. Mas funcionou. Depois de muito cansaço de ambos, César estava deitado de barriga sobre o lombo do cavalo. A aranha sentou sobre a cabeça do amigo cavalo e lá foram eles vagarosamente seguindo a linha de teia para fora da floresta.  Depois de alguns minutos se depararam com a campina novamente e pensaram juntos: “Graças a Deus!”.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

parte 4


  1. A TARTARUGA

          A chuva foi parando aos poucos, e o céu cinzento deu lugar ao brilho do sol. O calor fazia bem aos dois, dava animo para continuarem aquela aventura. Todas as criaturas da floresta saiam de suas tocas, e todos podiam ver como a floresta se tornara mais verde depois daquela noite de chuva forte. O caminho que percorriam estava difícil, a lama chegava até a metade das pernas do cavalo, aquela cor amarelada de seu pêlo, agora se tornara marrom. Estava cansado, porque tinha que ter mais cuidado ao andar na lama, isso fazia com que tivesse que diminuir o passo, e o peso de César também não ajudava no equilíbrio. Mas mesmo assim ele não desistia.
          Deram mais uma parada para descansar, e César se lembrou que não havia sobrado nada da comida que trouxera. Estava começando a ficar com fome.
          - Escute amigo, sei que está cansado. Enquanto você descansa, eu vou caminhar e tentar achar alguma coisa que possa comer.
          “Por que você não caça algum animal, vi que trouxe uma faca junto com você.”
          - Você está louco? Acha que vou sair por ai estripando esquilos? – e deu uma risada - não meu caro, acho que algumas frutas estarão mais ao meu alcance.
          “Bom, então cuide as frutas que você vai pegar”.
          - Lá vou eu! – e saiu andando pelo meio da folhagem.
          “Não vá longe César” – o cavalo calculou se havia dado tempo de o garoto escutá-lo.
         
          Agora o estômago de César já começava a roncar, e ele tinha pressa em encontrar alguma coisa que fosse possível comer. Também tinha pressa porque pensava que poderia voltar a chover, e isso adiaria ainda mais a viagem deles. Então deveriam seguir em frente o quanto antes. Mas de barriga vazia, ele não seria de muita serventia, precisava encontrar algo. Não quis se afastar do cavalo, temia não encontrar o caminho de volta, portanto ficou dando voltas na mesma área. Foi ai que alguma coisa vermelha brilhou no meio de algumas plantas, eram pequenas bolinhas. A cor era de um vermelho tão vivo, elas realmente pareciam frutinhas apetitosas... Apanhou o que pode colocar dentro da camisa que havia feito de saco. Ficou feliz, pensou que de fome pelo menos não morreria. Até sorriu para si mesmo. Pensou na mãe, e nas delicias que ela sempre cozinhava, imaginou em cada uma daquelas frutas um prato diferente que sua mãe já havia preparado, e foi com água na boca, de cada lembrança boa e deliciosa, que ele comeu uma, duas, três, dez frutinhas. E então seguiu o caminho de volta. Quando chegou ao local onde o cavalo esperava, ele estava comendo também. Comia o capim enlameado que estava ao seu redor. Levantou a cabeça para cumprimentar César, e seus olhos de pavor encararam os olhos azuis de César. César ouviu aquela voz na sua cabeça, como um suplício:
          “Por favor, não me diga que você foi estúpido a ponto de comer isso!”
          - O que? Por quê? Elas estão realmente saborosas meu caro. – e colocava mais uma na boca.
          “CUSPA! AGORA!” – a voz ordenava na sua cabeça – “Não é possível que você não se lembre de nada do que você aprendeu quando era garoto! A primeira coisa que ensinam para as crianças que entram na floresta é que estas frutinhas apetitosas são venenosas César!” - o cavalo parecia estar bufando.
          César cuspiu:
          - Elas não deveriam ser rosa? As venenosas? Eu lembrava que deveriam ser rosa, sim, você está enganado! – ele sabia que não, mas ainda tentava se convencer de que não havia cometido aquele erro tão idiota, e agora pensava que por causa disso, não cumpriria a missão, e nunca mais tornaria a ver as pessoas que ele mais amava, porque ele iria morrer da maneira mais estúpida que ele poderia ter imaginado.
          “O que vamos fazer agora César? Me diga! Me diga como ajudá-lo que eu faço!” – o cavalo estava apavorado, não sabia que direção tomar, não sabia se deveria colocar César nas suas costas e levá-lo de volta à vila. Mas lá também não haveria ninguém que pudesse fazer alguma coisa, disso ele sabia - “Me diga, o que faremos? Quantas horas você ainda tem? Duas ou três no máximo? Suas pernas já estão formigando?”
          Era assim que elas agiam. Eram vermelhas e brilhantes para atrair os idiotas. Depois de algum tempo de ingestão, começavam os formigamentos, de início pelas extremidades. Depois a paralisia do corpo. E por último, o coração deveria parar de bater. E ele estaria duro, imóvel, morto naquele chão úmido e enlameado.
          “O que faremos? Pensa! Rápido garoto!”
          - Eu não sei, se estivesse em casa, provavelmente chamaria o Doutor Pernáculo, o velho saberia o que fazer. Mas aqui...
          “Você deveria chamá-lo então!”
          - Você se esquece de que eu não sei onde foi parar todo mundo! Como poderia chamá-lo?
          “Talvez, não sei, mas talvez você possa...”
          - Não, o que nós temos que fazer é encontrar um rio, para que eu possa beber o máximo de água possível, e assim tentar diluir esse negócio no meu estômago. Vamos! – e subiu nas costas do cavalo – Corra! Corra!
          Ele correu, com todas as forças que tinha, precisava salvar o amigo. Eles podiam ouvir o barulho de água corrente e sentir o cheiro das pedras molhadas. Mas parecia demorar uma eternidade para encontrarem aquele rio. Mas então, finalmente, a floresta deu espaço a uma margem de minúsculas pedras negras, e na beira dela o rio imponente.
          César correu até a beirada das pedras, deitou-se na margem, reuniu os dedos em concha e pegou um punhado. Engoliu com a sensação de estar tomando um remédio milagroso. Na verdade, a água não seria o suficiente para salvar-lhe a vida. A toxina não iria se diluir. Preparou-se para pegar mais um punhado, quando avistou uma grande cabeça verde emergindo da água. Foi então que aconteceu mais uma vez, a voz da criatura na cabeça de César, chamando seu nome. O que ele viu a seguir foi o grande casco, numa tonalidade verde escura, formando imagens quadradas. Aquela tartaruga deveria ter mais de 100 anos, parecia velha e maltratada. Mas não importava, ela estava ali, e estava falando com ele, assim como a voz aveludada e o cavalo o fizeram. E a tartaruga disse a ele:
          “César, o que lhe aconteceu filho?”
          - O quê, mais um agora? Você me escuta? Entende-me? – e olhou na direção do cavalo, que não parecia nem um pouco surpreso com o acontecido.
          “Eu escuto, eu entendo e eu sinto você, sei que há alguma coisa errada. Deixe que esta velha tartaruga, que já viveu muitos anos, conheceu muitos lugares e pessoas, te ajude neste momento difícil. Conte-me o mal que o aflige filho.”
          - Eu comi aquelas frutinhas vermelhas, cerca de dez delas – e apontou para a camisa em forma de saco presa na mochila, sobre o cavalo. Ali ainda haviam cerca de quinze daquelas malditas frutas.
          “Mas você é estúpido ou o que meu rapaz? Quantas vezes já não devem ter-lhe ensinado a não tocar nestas frutas, o quanto são perigosas!”
          - Estúpido pode-se dizer – disse com um sorriso de meia boca.
          “Primeiro você irá vomitá-las. Coloque o dedo na garganta e force pra sair.”
          César obedeceu. No início se sentiu constrangido por estar fazendo aquilo. Depois pensou que eram só animais, não havia motivo para ter vergonha na frente deles. Vomitou o que pôde. Viu os restos vermelhos se misturarem às pedras negras e a água do rio vindo em pequenas ondas limpar a sua bagunça. Sentiu alívio, aquilo teria que funcionar, aquela tartaruga parecia saber o que falava.
          “Agora que você vomitou o que conseguiu, peça ao seu amigo cavalo que adentre uns metros na mata. Lá ele irá encontrar uma planta cujas folhas formam um desenho de coração. Ela é de um tom de verde muito escuro. O gosto é terrível, mas irá resolver o seu problema.”
          O cavalo obedeceu à ordem, e alguns segundos depois retornou com o ramo em sua boca. César mastigou aquelas folhas fazendo caretas. O gosto era amarguíssimo. Parecia que sua língua não queria obedecer à ordem de seu cérebro de mandar aquela pasta amarga pra dentro. Mas ele conseguiu. Alguns minutos se passaram, e o formigamento das pernas não existia mais. Os três se olharam e sorriram, César deu uma grande gargalhada:
          - Então parece que esse final trágico não estava no meu destino. Como posso lhe agradecer velha tartaruga?
          “É só você continuar a sua jornada filho, esse é o seu propósito não é? Eu vim para ajudá-lo. Essa foi a maneira que eu encontrei de fazê-lo. Estou feliz de poder vê-lo vivo e com a alegria de sempre. Afinal, você é especial César.”
          - Parece que as pessoas só têm isso a me dizer ultimamente, o quanto eu sou especial... Pessoas? Animais. E minha mãe...
          Ele se pegou pensando na mãe mais uma vez, como sentia saudade dela e do amor dela.
          - Mas me diga cara tartaruga, onde aprendeu a deter venenos?
          “Ah meu caro, eu já sou muito, muito velho. Já vi muitas coisas boas e ruins acontecerem com as pessoas, e já tive que ajudar muitas delas também. Nós todos temos um propósito nesta vida. E ajudar os outros é o maior deles. Eu não poderia simplesmente ver você morrer envenenado na minha frente e não fazer nada. E foi agindo assim, que eu fui aprendendo certas coisas.”
          - Pois então estou grato, e feliz de tê-lo encontrado.
          César abriu um grande sorriso e pousou uma das mãos no casco da tartaruga. Ela pareceu retribuir o sorriso, mas é claro, animais não sorriem. O cavalo se aproximou dos dois, e César colocou a outra mão em cima de sua pata.
          - Vocês dois não sabem como me ajudaram até agora. Eu não sei se teria forças.
          “Não se subestime meu amigo” – disse o cavalo – “Eu sei que existe muita força dentro de você. Agora vamos, temos que atravessar esse rio. Eu posso nadar, mas não com você em cima de mim. Você nada?”
          - Nado, mas não acho que possa agüentar com esta correnteza e esta distancia entre as margens. Deve ter mais de um quilometro até o outro lado. Acho que depois desse quase envenenamento eu estou sem forças para isto.
          “Não se preocupe filho, tudo o que você tem que fazer é segurar em meu casco. O resto deixe comigo. Sei que sou um tanto vagaroso em terra, mas ninguém nunca falou mal de mim nadando.” A velha tartaruga deu uma risada.

          O cavalo se aproximou da margem e deixou as patas tocarem a água. Sentiu os pêlos arrepiarem de frio. Sentiu o gelo da água. Teriam que ser rápidos na travessia, torcendo para que os músculos agüentassem. Lá se foram os três, César agarrado ao casco da velha tartaruga tentava ajudar batendo os pés, e o cavalo ao lado. A tartaruga tinha razão, dentro d’água ela não perdia em nada para a velocidade do cavalo, nadavam lado a lado.  A diferença é que na metade do percurso, o cavalo já sentia os músculos enrijecendo por causa do frio. E César já não conseguia mais ajudar batendo as pernas. Mas chegaram à margem oposta.
          “César” – disse a tartaruga – “Você precisa acender uma fogueira o quanto antes, senão você e seu amigo não irão agüentar o frio, precisam se aquecer.”
          Com o pouco de forças que ainda tinha, César catou os galhos que achou pelo caminho e preparou o fogo. O cavalo tremendo. Ainda era dia, e o calor do sol ajudava um pouco. Mas seria por pouco tempo, algumas nuvens negras surgiam no horizonte, sinal de chuva para a noite.
          Despediram-se da tartaruga, que ficou no rio, ela não seguiria viagem junto a eles. Ajudou no momento que foi necessária, a partir dali, seria apenas um atraso na vida deles. 

quinta-feira, 16 de maio de 2013

parte 3


        Foram horas de cavalgada e César realmente já não sabia mais onde os dois estavam. O sol parecia querer ir embora e dar lugar a luz da lua. Teriam que parar e levantar acampamento ali no meio da floresta. Foi o que fizeram. Procuraram um local onde pudessem se abrigar caso voltasse a chover, e encontraram algumas pedras formando um abrigo. Foi ali que César acendeu a fogueira com alguns galhos que encontrou pela volta. Depois de devidamente instalados, César comeu uma parte da refeição que sua mãe havia lhe preparado. Ele não sabia quantos dias ficaria fora, e pensou que a mãe, assim como ele, também não deveria saber, uma vez que aquela comida deveria durar no máximo até o dia seguinte. Acho que ela havia subestimado sua fome. Bebeu um pouco da água do cantil, na verdade não sentia sede, o trabalho duro foi todo feito pelo cavalo.
          - Toma, você precisa beber.
          “Na verdade eu não preciso de nada enquanto sou assim César.”
          - Assim? – não seria ele um cavalo de verdade pensava César.
          “Eu estou aqui assim para lhe ajudar, enquanto eu estiver assim, não preciso de nada, porque é a mágica que me torna o que eu sou agora.”
          - Mágica? Mas que história é essa amigo?
          “Eu não posso dizer César, você precisa descobrir durante a sua jornada, até levar a pedra de volta.”
          - Mas então você sabe onde devemos ir? Então essa história toda de pedra e do meu pai ser um homem especial é verdade? Minha mãe estava certa? Por que você não me conta? Eu preciso entender o que esta acontecendo, qual o propósito dessa viagem, de eu conseguir escutar os pensamentos de um cavalo!
          “Calma César. Primeiro, eu não sei onde devemos ir, só estou indo, como você mandou.”
          - Eu não mandei nada meu caro, você que me mandou subir nas suas costas.
          “Foi seu coração César, eu ouvi ele, ele que me disse por onde deveríamos seguir. Todo esse caminho por onde cavalgamos, talvez você não tenha percebido, mas foi você quem nos conduziu por ele, eu pude ouvir cada direção vindo do seu coração, e assim eu sabia por onde deveria seguir.” Houve uma pausa, César estava ainda incrédulo, e o cavalo parecia perceber isso, ele tinha paciência. “Quanto a historia da pedra, de seu pai, eu não sei bem, só sei o que foi dito para você. A única coisa que sei, é que devo ficar ao seu lado até onde eu puder agüentar, para ajudá-lo, como seu amigo”.

          A noite chegou e com ela a chuva, mas pelo menos por aquela noite os dois estariam protegidos. Dormiram com o calor da fogueira, que aos poucos foi se apagando, e a cada estalo das madeiras querendo virar brasa, o cavalo acordava. Pela manhã, a chuva persistia. Caia forte sem dar trégua.
          “César, teremos que esperar a chuva passar para continuarmos a jornada. Não seria nada saudável expô-lo a esta chuva, sendo que ainda precisará de muita saúde para continuar, ainda estamos no começo de tudo.”
          - Sim, tem razão. Ficaremos – e abriu o embrulho de folhas de milho que ainda continha uma parte da comida que sua mãe havia preparado. Comeu vagarosamente, saboreando cada pedaço, lembrando de todos os pratos que sua mãe já havia lhe preparado com amor. Teve vontade de chorar, mas não chorou, apenas encheu os olhos com lágrimas. O cavalo percebeu a angustia de César:
          “Acho que devemos conversar meu amigo, assim faremos o tempo passar mais rápido, enquanto esperamos a chuva cessar.”
          - Sobre o que quer falar? – disse César, engolindo os últimos pedaços da comida – Acabou!
          “Me conte da sua vida meu caro, tem algum amigo?”
          - Tenho sim um grande amigo, que se chama Gustavo.
          “E como ele é?” – César sentiu que o cavalo tentava distraí-lo de sua dor.
          - Ah, sei lá, ele é alto como eu, loiro e está acima do peso – deu uma risada ao lembrar-se da barriga de Gustavo, que costumava ser motivo de piadinhas dos garotos da vila.
          “Não é o que eu quero saber garoto, eu quero saber como ele é para você, que tipo de amigo ele é.”
          - Ah claro – pensou por um instante – Gustavo e eu somos amigos desde criancinhas. Nossas casas ficam bem próximas. Na verdade, eu me lembro bem da primeira vez que o vi. Acho que tínhamos uns sete anos, e chovia, assim como hoje. Eu voltava para casa e o vi sentado na frente da casa dele, estava encharcado da chuva e chorava. Quando perguntei o que houve, ele disse que seu cachorro havia fugido, o cachorro que era seu melhor amigo. Então dei a idéia de irmos procurá-lo. Passamos a tarde na busca do cachorro, até aqui nesta floresta entramos atrás dele. Quando ele finalmente apareceu, Gustavo me olhou e disse “a partir de hoje, meu melhor amigo é você!”. Depois disso nunca mais nos separamos. Estávamos juntos em todos os melhores e piores momentos. Ele sabe tudo sobre mim e eu sei tudo sobre ele, sei das coisas que ele mais gosta, e das que ele mais odeia. Sei como irritá-lo e sei como deixá-lo feliz. Sei que ele sente quando estou triste, e que sempre estará ao meu lado quando eu precisar.
          Havia lágrimas nos olhos do cavalo. Aquela amizade era realmente muito forte.
          - Onde quer que Gustavo esteja agora, sei que está pensando no meu bem estar, assim como estou agora pensando no dele. Esse sumiço das pessoas da vila, isso realmente está me preocupando. Preocupo-me com Gustavo, não sei onde ele está, e isso realmente está me deixando louco!
          “Não se preocupe meu amigo, tenho certeza de que ele deve estar bem, assim como os outros. E tenho certeza também, que como seu grande amigo, ele não gostaria que você desistisse agora, porque talvez disso dependa a volta de todos eles.”
          Os dois ficaram em silêncio, pensando na mesma história que César havia contado, pensando no mesmo momento, o momento em que os dois amigos encontraram o cachorro.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

parte 2


2. O CAVALO

         César caminhou pelas ruelas da pequena vila. Tudo parecia tão vazio, sem vida. As janelas das casas ainda fechadas. Não sentia o cheiro dos pães que normalmente assavam pela manhã, só o cheiro da grama molhada. À passos lentos, César observava tudo ao seu redor, ele crescera naquela vila, conhecia cada pessoa de cada canto que ali habitava. Vivera toda a infância ao lado de seu grande amigo Gustavo. E onde estaria ele agora? Ele que todos os dias vinha lhe cumprimentar na janela e o convidava para entrar. Onde estaria seu melhor amigo? César não sabia, mas instintivamente temia por ele. Andou pela estreita trilha de terra que levava para a saída do vilarejo e encontrou o muro que limitava a cidadezinha, as pedras brancas empilhadas umas sobre as outras não chegavam a bater na sua cintura.
         Enquanto vislumbrava a floresta que se formava na sua frente com toda a sua magnitude, César percebeu algo mágico na natureza: um grande cavalo de pêlos amarelados estava parado ali, olhando para ele, como se estivesse esperando por ele há décadas. O olhar lhe parecia tão familiar, como se o conhecesse, mas nunca havia visto este animal tão maravilhoso na vila. E o que faria aquele belo cavalo ali? Alguém teria o perdido e ele cavalgou sozinho até encontrar a vila? Estaria ele com fome? Sede? César sabia que possuía alguma comida que sua mãe havia lhe preparado para a “jornada” e resolveu oferecê-la ao cavalo. Quando fez isso, o cavalo deu um passo para trás e o olhou diretamente nos olhos, e foi então que algo mágico aconteceu, César pôde escutá-lo, dentro de sua cabeça, assim como havia acontecido com a voz aveludada na madrugada, e o que ele ouviu foi: “Eu não estou aqui para atrapalhá-lo César, nem comer seu suprimento, eu estou aqui para ajudá-lo”.
         - Eu só posso mesmo estar ficando louco – disse César instintivamente.
         “Você não está louco César, você só precisa de tempo para se acostumar com tudo o que virá daqui para frente. E eu, como seu amigo, vou lhe ajudar e lhe conduzir por essa floresta. Você não estará sozinho jamais César, todos que te amam estarão com você.”
         Os pensamentos de César agora se confundiam com os do cavalo, ele realmente estava falando com César, dentro de sua cabeça. E César entendeu quando ele pediu que o montasse e o deixasse levá-lo para dentro da floresta escura.
         - Eu nem mesmo sei para onde estou indo meu caro amigo.
         “Nós iremos descobrir isto juntos César, nós só precisamos continuar seguindo em frente. Vamos amigo, suba e vamos correr um pouco.”
         O cavalo era realmente muito rápido, eles levaram apenas alguns segundos para adentrar na mata. Aquela floresta também tinha feito parte da infância de César. Mas não a floresta inteira, ele só conhecia alguns metros adentro, sua mãe nunca havia o deixado explorá-la a fundo com medo de que se perdesse. Depois de jovem, ele só costumava usar as estradas para ir de uma vila a outra. E a floresta agora, parecia mais bonita do que ele se lembrava. Era primavera ainda e as flores caiam por todos os lados, todas as cores e todos os aromas se misturavam. As abelhas voavam de uma flor a outra, trabalhando para o inverno. Os animais estavam soltos, aproveitando aquele calor que daqui mais alguns meses daria lugar à chuva. Tudo parecia tão vivo, como César nunca havia visto antes, todas as pequenas e grandes coisas desse mundo agora tinham suas cores mais vivas. César ainda não entendia o que fazia ali, mas sabia que era ali que ele deveria estar, naquele caminho, com aquele cavalo. E os dois continuaram enquanto a mata se fechava cada vez mais atrás deles. Às vezes o cavalo olhava para César, com o canto dos olhos, diminuía o passo, tinha medo que estivesse rápido demais para César, e este sabia disso, sentia isso, e tratava de alisar sua cabeça como se disesse: pode prosseguir amigo.

.... continua....

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Parte 1

1.   A MANHÃ

         Quando acordou assustado pela manhã, aquilo tudo parecia ter sido um sonho para César. Ele levantou ao som da chuva forte, a barriga estremecendo de fome. Vestiu a mesma roupa do dia anterior, a camisa de algodão azulada, as calças largas brancas já bem manchadas e as botas marrom que amarravam ate o tornozelo. Olhou-se no reflexo do espelho e os olhos azuis escuros brilharam, ainda havia um pouco de sono neles.  Ajeitou os cabelos castanhos ondulados com as mãos. O cordão com o pingente que havia encontrado no lago estava ali, mas a cor parecia ter mudado. Quando o encontrou na tarde anterior, a pedra era de um verde lindo, e agora, estava apenas de um tom marrom, sem nenhuma graça. Mesmo assim o colocou no pescoço, por dentro da camisa. Sua mãe já o esperava na pequena cozinha:
         - César, o que aconteceu na noite passada?
         - Fez ovos? Estão cheirando bem... O que tem neles?
         - César? – ela olhava com certo ar de indignação – eu lhe fiz uma pergunta. Tive que te carregar até o quarto esta noite, depois de ouvir você tombar na porta da frente. Na verdade eu ouvi o barulho, mas não imaginava que fosse você. Chamei seu nome, sacudi, e mesmo assim você não acordou.
         - Ah, então foi você que me levou? Como conseguiu isso?
         Realmente era algo a se pensar, uma vez que César era muito alto, com cerca de 1,80 metros e oitenta e poucos quilos. Já sua mãe, uma baixinha de 1,60 metros, e com alguns quilos a mais do que deveria. O pai, desconhecido.
         - Eu simplesmente te arrastei, com todas as minhas forças, bati suas pernas em todos os móveis pelos quais passamos, e mesmo assim você não acordou, fiquei preocupada e resolvi chamar o Dr. Pernáculo.
         - Você saiu no meio da madrugada para chamar aquele vovozinho mãe? – ele estava realmente bravo.
         - Saí, mas não encontrei ninguém na casa dele. Hoje pela manhã, fui até a vizinha, pedir um pouco de farinha, e não havia ninguém também... Senti que a vila está meio vazia. – havia um ar de preocupação na voz dela.
         - Devem ter ido à feira do vilarejo vizinho – disse César, para ele aquela resposta parecia bem racional.
         - E você não me disse César, como foi parar ali? – ela realmente parecia precisar de uma reposta.
         - Eu sei como fui parar mãe, fui andando. Fui porque pareciam me chamar. E o pior, era uma voz que tinha cheiro mãe!
         - Droga! Ele disse que isso ia acontecer, mas disse que seria quando completasse 20 anos, não 18 – agora ela parecia estar apavorada – eu não posso te contar, foi algo que seu pai me falou, antes de nos deixar, mas é tão horrível, que eu não posso te contar.
         - Mas que droga mãe! Que droga de história é essa?
         - Vai César, arruma sua mochila com algumas mudas de roupa e vai. – nesse momento ela já estava chorando.
         - Vai? Vai aonde? Que história é essa? A senhora... Nunca vi a senhora chorando... Pra onde quer que eu vá? – agora quem gostaria de chorar era ele, mais por não entender o que estava acontecendo, mas as coisas pareciam estar realmente sérias por ali.
         - Você encontrou a pedra? – agora já estava soluçando, o choro não tinha mais controle.
         - Que pedra? Ah você diz o colar? O que tem ele mãe?
         - Vai César, só vai... Pega suas roupas, um agasalho, enquanto eu preparo alguma comida pra você levar.
         - Mas eu não estou entendendo mãe... O que está acontecendo?
         - Arrume a sua mala como eu lhe pedi, enquanto eu tento me controlar um pouco aqui. Quando você estiver pronto, eu também estarei. – na verdade, não parecia que em 5 minutos ela conseguiria controlar todo aquele sentimento. Mas de alguma maneira, ela conseguiu.
         Quando César voltou do quarto, trazia nas costas uma mochila velha de couro marrom, parecia estar cheia até a metade.
         - Esses são os calçados mais confortáveis que você tem? – ela havia se controlado.
         - São. Agora explica. – ele precisava disso.
         Houve alguns segundos de hesitação. Parecia que sua mãe havia envelhecido dez anos naqueles cinco minutos em que ele estivera no quarto. Parecia que ela carregava o peso do mundo nas costas, porque já não conseguia se manter ereta. Depois de algum tempo, ela parou diante dele, pegou sua face com as duas mãos, ele sentado, ela de pé. Olhou dentro daqueles olhos que pareciam o mar, de tão profundos, e começou a despejar:
         - Eu sempre soube que você era especial, não como uma mãe vê um filho quando ele nasce, porque todas elas acham que seus filhos são especiais. Não, você nasceu especial. Acho que por conta de seu pai.
         - Você nunca quis falar dele, por que agora?
         - Porque o que esta acontecendo agora, é por conta dele. Porque ele sempre foi especial, e porque um dia eu fui bonita, eu tive a minha graça. E foi por isso que você nasceu. Porque ele viu alguma graça em mim. Eu só estive com ele por um dia César, ele não nos abandonou, ele na verdade nunca esteve aqui. Mas nesse único dia em que estivemos juntos, ele soube que você nasceria. E ele disse ao partir, que quando você completasse vinte anos, você seria chamado, pra cumprir o seu destino ao lado dele. Ele disse que você encontraria a pedra, e que a pedra chamaria a voz. Ele disse que a pedra deve retornar ao seu verdadeiro dono, e que eu não deveria impedi-lo, porque se você não fosse de encontro a ele, você teria seu fim, antes de haver começado e...
         César interrompeu colérico:
         - Então você ficou um dia com um lunático, acreditou em tudo o que ele falou, e agora está tão louca quanto ele, e quer me colocar para fora de casa por conta dessa história maluca?
         - Não fale assim César, seu pai não era um louco, pelo contrário, você deve ter respeito, eu nunca imaginei que um homem como ele perderia algum tempo com uma mulher como eu. E ele me deu você César, que é especial como ele.
         - Especial? Mãe? Quem é ele?
         - Eu não posso lhe falar. Você vai descobrir por sua própria conta, na sua jornada. Só vá César, caminhe. Seu coração vai lhe mostrar o caminho que você deve seguir para devolver a pedra. Você precisa fazer isso. As pessoas terem desaparecido de Santa Apolônia não é mero acaso. Você tem que ir sozinho e não deve falar com ninguém a respeito disso. Mas alguns ajudantes irão aparecer pelo seu caminho, tenha certeza, porque você é especial feito seu pai.
         César saiu da casa sem dizer uma palavra. Na verdade, ele não acreditava em nada do que a mãe havia falado. Ele saiu simplesmente para não ter mais que ouvir aquela ladainha toda, aquilo tudo tinha embrulhado seu estômago, de modo que ele havia se esquecido de comer os ovos que ela havia preparado. Então pensou em ir até a casa de seu amigo Gustavo, onde às vezes conseguia filar alguma refeição. Bateu à porta e nada, ninguém atendeu. Olhou para a casa ao lado, parecia mortalmente vazia, nem o cachorro latira como de costume quando algum estranho entrava no jardim.
         Assim, ele simplesmente, resolveu caminhar.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Prólogo



          César vinha descendo a montanha, devagar. Era realmente bem lento o seu passo. Estava cansado da jornada. Muitas coisas haviam acontecido nos últimos dias, desde a manhã do sábado anterior, quando a chuva lhe acordou ao cair tempestuosamente pela janela de seu quarto. Tinha acordado no susto, parecia que tinha pressentido o que viria. Mas como poderia? Nada do que ele havia vivido até então, haveria de se comparar com qualquer segundo que ele passara naqueles últimos dias.

          Na madrugada de sexta, enquanto todos deveriam estar descansando, César sentiu a vibração. Ele acordou e simplesmente a sentiu. Cada pêlo de seu corpo se levantou, parecia que havia estática no ar. E ele ouviu dentro da sua cabeça: “César!”. Tentou procurar pela voz, primeiro na cozinha. No escuro, aquela cozinha achatada parecia menor do que realmente era, não se enxergava a coloração azul das paredes, só as sombras dos poucos móveis.  O fogão a lenha ainda com algumas fagulhas, que tentavam se apagar, mas não conseguiam, a noite estava quente demais. Ele continuou pela sala, “César!” a voz dizia. Aquela voz ele nunca havia escutado, ela era doce como veludo, parecia com o som que as flores fariam se pudessem falar, porque aquela voz parecia, para ele, ter até aroma, e era bom, muito bom. A sala vazia parecia estar ecoando aquela voz, mas não estava, porque a voz, apesar de César não perceber, realmente vinha da sua cabeça, não adiantaria tentar procurá-la. Mas ele continuou, e nada achou. A estática continuava no ar, e o cheiro doce também. Ali mesmo ele adormeceu, no meio do nada, no meio da sua procura, e como acordou na manhã de sábado, deitado em sua cama, ele não sabia. O que aconteceu depois foi uma sucessão de fatalidades. Mas isso, vou lhe contando aos poucos.